19.8.07

O busto de Lenine



São robustos e morenaços quando fundidos em bronze. Mas pálidos e frágeis se moldados em gesso. Ficam mudos e quedos onde quer que os coloquem. São sempre carecas.
O único exemplar que resta é de bronze. Jaz abandonado junto a uma janela, no rés-do-chão de uma imponente moradia, na avenida Gago Coutinho, sede (em Lisboa) da Fundição do Nosso Laureado. Paz à sua alma.


um.
A sala estava às escuras. Ele entrou à socapa. Mesmo na penumbra, era-lhe fácil identificar o vulto. Aproximou-se dele pé ante pé. Sorrateiramente, tocou-lhe. Sentiu-lhe a testa fria e isso perturbou-o. Tinha que ser rápido. Vociferou uma imprecação surda.
Aquele tipo estorvava-lhe o futuro.
Com um gesto nervoso, agarrou nele e — zás! — trancou-o no armário.
O ruído seco e cruel ecoou por todos os gabinetes.
Já está! — pensei eu — Já o encafuou outra vez.
Depois, adivinhei-lhe o som abafado dos passos sumindo-se no fundo do corredor.


dois.
Ao princípio, escondia-o dissimuladamente. Apenas por uma hora ou duas. Mas, à medida que a obsessão se acentuava, passou a encafuá-lo descaradamente duas e três vezes por dia.
Ultimamente, nem sequer se dava já ao trabalho de tornar a pô-lo no sítio.
Era a camarada da limpeza quem ia dar com ele, na manhã seguinte, trancado no armário entre pilhas de originais recusados. Sobretudo romançada e poesia. Mas também um ou outro ensaio.
Indignada, soltava um Credo, benzia-se, colocava-o respeitosamente no lugar, polia-lhe a calva com o pano do pó, beijava-lhe a testa e passava-lhe o espanador pelo casaco. Sempre por esta ordem.
Tamanha ingratidão até à mulher da limpeza repugnava.
Que pouca-vergonha! — dizia ela entre dentes. Sim, tinha munta falta de cabelo, e depois? Via-se bem que era pessoa de categoria. Tomara eles chigarem-le aos calcanhares! Esses borra-botas que o papaguevam a torto e a direito, por dá cá aquela palha. Invejosos!
Via-se bem que era pessoa de posição. Até usava colete. E, embora fosse mudo, ela tinha aquase a certeza que era estrangêro. Aquilo eram tudo invejas.
Alguém o há-de ter metido pa drento do armário, não é? Atão, pois. Se o homem nem pernas tinha. Mas podiam ter a certezinha de que ela havia de descobrir quem era o estapor que encafuava o senhor, à bruta. Ou não se chamasse Estafânia da Conceição.

[Continua proximamente]

No comments: